Muita gente tem o sonho de ver o Papa. Não necessariamente falar com ele, nem tirar uma foto ao seu lado. Ver. Estar ali, na praça cheia de bandeiras, esperando que a figura de branco apareça na janela do Palácio Apostólico, ou na varanda central da Basílica de São Pedro. É difícil explicar esse desejo para quem nunca sentiu, porque não é racional. É uma fé experimentada com o corpo. É como enxergar um símbolo de esperança.
Gabriel García Márquez, com sensibilidade literária, captou esse sentimento no conto “Dezessete ingleses envenenados”, datado de 1980, incluído em “Doze Contos Peregrinos”, publicado em 1992. A protagonista é uma senhora colombiana, Prudencia Linero, que viaja sozinha para Roma. Singra o Caribe, o Atlântico e o Mediterrâneo para isso. Ela havia ficado viúva de um marido que passara quase três décadas acamado, acordara, se despedira e morrera. Com os filhos criados, decidiu ir a Roma. E foi.
O conto se passa na chegada de seu navio, em um domingo de verão, em Nápoles. Ela não entende a língua, não gosta da comida, estranha os hábitos, mas aceita o desconforto porque fez a travessia para ver o Papa. Não é turismo. É devoção. No fim, o desejo de ir à Cidade Eterna – e, especificamente, ao Vaticano – parece sacrificante — mas o gesto dela, sincero e fiel, fala muito sobre o que um papa representa para mais de um bilhão de pessoas.
Essa força não é mera ficção: é real e se renova toda vez que um novo papa é escolhido. Foi o que aconteceu, quinta-feira passada, com a eleição de Leão XIV, nome adotado pelo agostiniano Robert Francis Prevost, cardeal nascido em Chicago, nos Estados Unidos, com longa trajetória missionária no Peru e na Cúria Romana. Ele revelou por que escolheu esse nome: em homenagem a Leão XIII, um dos líderes mais importantes da Igreja. “São várias as razões, mas a principal é porque o Papa Leão XIII, com a histórica encíclica ‘Rerum Novarum’, abordou a questão social no contexto da primeira grande Revolução Industrial”, explicou o novo pontífice em seu primeiro discurso aos cardeais.
A escolha do nome não é um capricho estético, não é um jogo publicitário: é uma mensagem. Leão XIII, nascido Vincenzo Gioacchino Pecci, pontífice entre 1878 e 1903, subscreveu a encíclica “Rerum Novarum” (Coisas Novas), de 15 de maio de 1891. Trata-se de um texto clássico, que inaugurou a Doutrina Social da Igreja Católica — um conjunto de princípios que até hoje orienta a visão católica sobre economia, trabalho, justiça e dignidade humana. Uma obra curta, que se coloca como uma leitura civilizadora, seminal dos direitos sociais, mas infelizmente cada vez mais ignorada na formação humanística – inclusive dos profissionais jurídicos, imersos em discursos simplificadores, clichês e meméticos, ou em leituras intelectualmente atrofiantes.
A “Rerum Novarum” nasceu num tempo de mudanças profundas. A Revolução Industrial havia transformado as cidades, criado fábricas, mudado o modo de vida até então conhecido e acentuado desigualdades. De um lado, patrões com lucros altíssimos. Do outro, trabalhadores exaustos, mal pagos, sem qualquer garantia. Explorados. Leão XIII entendeu que a Igreja precisava falar sobre isso. Não apenas rezar por aqueles que sofrem, mas tomar posição.
A beleza da “Rerum Novarum” está justamente na sua busca por equilíbrio. Leão XIII não caiu em discursos fáceis. Ele criticou o socialismo, então emergente, que queria abolir toda propriedade privada, mas também condenou o liberalismo insensível que via o trabalhador como simples engrenagem. Propôs uma via cristã: a justiça social com base na dignidade da pessoa. E insistiu num ponto fundamental: o trabalho não é castigo, é vocação. Deve ser respeitado.
Ele escreveu que a propriedade privada é um direito natural — mas que os donos de bens devem usá-los com justiça. Que o operário tem direito a um salário suficiente para sustentar sua família com dignidade. Disse que o salário não pode ser negociado como se fosse uma mercadoria qualquer: deve ser justo, suficiente e honesto: “Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver; […] acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado”. Que o trabalho tem limites, que as mulheres e as crianças, ainda mais que os outros, não devem ser exploradas. Que o Estado não pode se omitir: “O Estado deve favorecer tudo o que, de perto ou de longe, pareça de natureza a melhorar a sorte dos trabalhadores. Esta solicitude, longe de prejudicar alguém, tornar-se-á, ao contrário, em proveito de todos”.
Leão XIII também falou da importância das associações. Incentivou que trabalhadores criassem sindicatos, confrarias, corporações pautadas pela busca do bem comum: “É altamente louvável o zelo de grande número dos nossos, que […] se reúnem em congresso, para comunicarem mutuamente as ideias, unirem as suas forças, ordenarem programas de ação”. Disse que o Estado tem a obrigação de proteger os pobres — porque os ricos já têm meios de se proteger: “Na proteção dos direitos particulares, deve preocupar-se, de maneira especial, dos fracos e dos indigentes. […] A classe indigente, ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças, conta principalmente com a proteção do Estado”. Disse que o descanso é um direito, especialmente o domingo, que deve ser dedicado à fé e à família. E, por fim, afirmou que sem caridade, nenhuma instituição sobrevive com dignidade.
Caridade, aqui, não no sentido de dar esmola, mas no sentido profundo: tratar o outro como irmão. Sacrificar-se pelo próximo. Fazer do bem comum um bem real, não um discurso. Leão XIII encerra a encíclica dizendo que a única solução definitiva é o amor, e que todos — governos, patrões, trabalhadores e Igreja — têm seu papel a cumprir.
A encíclica, até por ser mais do que centenária, tem algumas passagens datadas. Sua visão de o direito de greve e sobre o papel das mulheres no mundo do trabalho (há uma indicação de que deve ser doméstico), por exemplo, precisa de reflexões atualizadoras. Ao que tudo indica, é o que está por vir.
Ao escolher o nome Leão XIV, o novo Papa sugere que quer trazer a essência dessa encíclica para os tempos atuais. “Hoje, a Igreja oferece a todos a riqueza de sua doutrina social para responder a outra revolução industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial, que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”, afirmou o Pontífice, mostrando como enxerga paralelos entre os desafios da era industrial abordados por Leão XIII e os atuais dilemas da inteligência artificial.
É hora de buscar a ética e os valores mais nobres nesses novos tempos, portanto. Tempos de um mundo hiperconectado, com IA substituindo empregos, com trabalhadores submetidos à tecnologia como mediadora de suas relações econômicas. Um mundo em que a desigualdade continua presente – e crescendo, só que agora com novos modelos de negócios. Nesse cenário, o sinal de Leão XIV parece claro: a doutrina social da Igreja precisa ser atualizada, sem perder sua essência.
Leão XIV, ao recordar tudo isso, com a mera invocação ao seu nome, parece falar também à Sra. Prudencia Linero, que viajou sozinha até Roma com um rosário na mão. Fala aos que estão do lado de fora da política, da economia, da mídia – sem voz. Fala àqueles que sustentam o mundo em silêncio — rezando, trabalhando, cuidando dos familiares, saindo de casa para assistir uma missa, praticando a caridade… A eleição de um Papa, para eles, é mais que um evento: é a renovação de um pacto entre fé e cotidiano.
Não é possível saber ainda como será o pontificado de Leão XIV. Mas o nome que ele escolheu já é provido de significado: diz que a fé pode e deve dialogar com o mundo real. Que a Igreja não é só altar, mas também chão. Que o Papa não é só chefe de Estado, mas sinal de esperança para os que creem. E, sobretudo, que a dignidade humana – um direito fundamental – continuará na pauta de 1,4 bilhões de católicos.
No caminho para as coisas novíssimas, os católicos têm um timoneiro.